Em sua porta, bati três vezes.
Você abriu, você sempre abre.
Me esperava com um café escuro e amargo;
Com seus bolos quentes, com seus chás, com suas palavras.Venha, minha criança, sente-se e eu te ensinarei;
Te contarei sobre as fadas, te contarei sobre o mundo.
Te contarei sobre a faca, te contarei sobre o espelho.E eu ouvi, Ana, eu ouvi todas as suas lições.
Os doutores de fadas, em inglês Faerie Doctors, são pessoas que identificam e curam o mal causado por fadas em humanos, animais ou plantações. São populares no folclore Irlandês, onde as fadas realmente causavam muitos problemas aos vivos, como raptos de crianças, destruição de plantações, roubo de alma e etc. A natureza de cura é dada pelo próprio povo pequeno, como uma das maiores bênçãos que pode ser concedida pelos mesmos.

Os doutores fadas são conhecidos por seus conhecimentos de ervas, são chamados também de homens fadas ou mulheres fadas, algumas vezes são chamados de bruxas. Em algumas versões, os doutores de fadas nascem quando as fadas se apaixonam por eles – e os levam aos outros mundos – onde aprendem os mistérios do mundo feérico e retornam com a capacidade de cura. Uma narrativa muito semelhante acontece no Maranhão onde alguns curandeiros são levados ao fundo do rio pelos encantados, desaparecem e retornam com a capacidade de pajelança e curandeirismo.
Alguns casos são conhecidos pelo seu extremismo. O de Bridget Cleary talvez seja o mais famoso – e brutal. Nascida em 1869 na Irlanda, Bridget foi um dos únicos casos documentados sobre um adulto que foi trocado pelas fadas, já que o mais comum são crianças que foram raptadas ou trocadas. Ela foi morta pelo seu próprio marido, em 1895, queimada. Em sua declaração, Michael Cleary apontou que sua esposa havia sido sequestrada por fadas e substituída por uma. Esse caso nada tem relação com as fadas, mas mostra como a crença no poder do povo pequeno consegue criar perversidades na mente humana.
Os doutores de fadas – por serem reconhecidos como fadas pelas mesmas – podem enxergá-las. Há um velho ditado onde diz que “não enxergamos as fadas, mas enxergamos os sinais de fadas!”, apesar dos sinais do povo pequeno serem possíveis de reconhecermos, os faerie doctors podem enxergá-los com clareza, seja com seus olhos físicos, seja com seus olhos mágicos.
Na Tradição Feri, percebo que muitas bruxas são chamadas para percorrerem o caminho de doutores e doutoras fadas. Muitas não se chamam assim, optam por usar o termo bruxa – que engloba isso tudo, querendo ou não – mas que compartilham conhecimentos profundos que foram adquiridos no mundo dos bons vizinhos, tão familiares a nós. Quando me iniciei, semanalmente entrava em contatos com Ana, uma das nossas divindades, para aprender um pouco mais sobre essa arte. Foi ela quem me ensinou tudo o que sei.

A primeira coisa que notei é que os doutores de fadas são diferentes para cada região. No Brasil, nossos espíritos locais são completamente diferentes e, usar receitas de doutores irlandeses, pode não ser tão eficaz em alguns casos. Penso também, com certa frequência, no papel do doutor de fadas em nosso mundo, no hoje.
Antes de eu falar disso, te contarei uma história de um dos atendimentos que realizei:
Era uma tarde quente. Havia um consulente de oráculo de ossos, um amigo que sempre vem ouvir o que os ossos têm para dizer. Os meus ossos são profundamente feéricos, são dedicados aos espíritos da Tradição Feri e participaram da minha iniciação como testemunhas. Nessa leitura, ele me relatou algo estranho: algumas partes do seu corpo inchavam aleatoriamente ao longo do dia. Jogando os ossos, a visão que os espíritos me passaram era que seu corpo estava com excesso de água, causado por encantados dos rios. Ele confirmou, através de sensações e sonhos que estava tendo. O oráculo também abriu minha segunda visão para uma cena onde eu o enxergava deitado no chão, com espíritos ao seu redor tocando seu corpo e onde o toque era feito, o corpo inchava. Seu corpo estava sendo preparado. Passei o que ele poderia fazer, através das fumaças do cachimbo e dos banhos tomados, os inchaços acabaram. Resultado disso? Ele se tornou um caminhante do mundo dos espíritos e hoje também tem contato com os encantados, possuindo uma conexão interessante com o trabalho que um de seus ancestrais realizava em vida, também aprendeu a curar.
Esse é um dos trabalhos que realizei como doutor de fadas, vivendo em 2025, no Brasil. Perceba que não livrei ninguém de raptos de fadas ou de plantações que foram destruídas. Não que esses casos não possam chegar até mim, mas penso no papel desse tipo de serviço no nosso mundo. Um outro tipo de serviço que percebo que doutores de fadas acabam assumindo no mundo atual são os caminhos bárdicos, muitos se tornam escritores, poetas, contadores de histórias, mantendo vivo de alguma maneira as crenças no povo pequeno circulando entre o mundo. Isso é um desafio e tanto. E essa é uma natureza muito comum das bruxas Feri, tradição que já vi sendo chamada de caminho dos guerreiros ou caminho dos bardos.
Uma bruxa querida, iniciada também na Tradição Feri e que conheci através de encontros online, realiza trabalhos de comunidade como doutora de fadas levando sua maleta e contando histórias onde é chamada. As histórias curam, sem sombra de dúvidas, em minhas formações como contador de histórias pude perceber isso de diferentes maneiras. As histórias são como remédios, como tinturas de ervas e são contadas a depender do público e do que o contador está sentindo naquele momento, algumas histórias que preparamos para contar em nossos espetáculos simplesmente são trocadas de última hora pois sentimos algo – quase de forma mágica – do público e que talvez, outra história do nosso arsenal caiba melhor para aliviar as dores das almas daquelas pessoas.
Cada doutor de fadas tem seus próprios conhecimentos. Muitos deles podem ser compartilhados pelas teias culturais que o prendem, como por exemplo conhecimento de ervas e rezas que são partilhadas pela tradição oral e que chegam no doutor de fadas. No meu caso, seria no mínimo tolo desconsiderar a botânica oculta brasileira transmitida pela oralidade. Os doutores de fadas caminham frequentemente nas trilhas do folclore de seus países. Possuem seus próprios conhecimentos, pois isso dependerá diretamente da relação do doutor de fadas com o mundo das fadas em si. As rezas que uso e as plantas que utilizo não serão as mesmas que outros doutores e bruxas utilizam.
Cada doutor de fadas desenvolverá suas técnicas para leituras de presença ou ataque de fadas. Alguns irão consultar oráculos, outros despertarão sua segunda visão, outros sairão do corpo para caminhar nos outros mundos. Os ataques de fadas podem vir por diversos motivos, os mais comuns ocorrem quando atravessamos uma fronteira e um limite que elas estabelecem. No Brasil por exemplo, isso acontece com frequência quando pessoas vão caçar sem deixar oferendas nas entradas da mata, se perdendo ou voltando doentes da caça.
Um outro tipo de ataque são pessoas que vão para os rios e acabam desrespeitando os espíritos locais, como o da garota que viralizou esse ano nas redes sociais compartilhando que foi para um rio onde os moradores locais dizem ser proíbido entrar menstruada. A garota, achando se tratar de uma crença supersticiosa, entrou. O resultado disso foi uma espécie de transe, que fez a garota levantar como sonâmbula e girar em círculos indo em direção ao rio. De madrugada, foi acordada com uma vontade imensa de se jogar no rio, como um transe que gerava essa vontade. Essa é uma das formas mais clássicas do boto cor de rosa atacar, conhecida por alguns como doença do boto.
O papel de um doutor das fadas seria o de justamente auxiliar nesses casos. Na minha experiência pessoal, muitas das vezes não “expulsamos” as fadas, como aquele que antagoniza com as mesmas, mas pelo contrário. Justamente pelas fadas enxergarem os doutores de fadas como seus semelhantes, há um maior espaço para diálogo. O trabalho é muito mais diplomático do que necessariamente de antagonismo. Em muitos dos casos, os doutores de fadas irão conversar com o povo pequeno, restabelecer os limites, cortar os vínculos mágicos do espírito com o humano. Somente em raríssimos casos, quando não houver acordo, dai sim terá que apelar para práticas mágicas que façam isso acontecer. Mas em todos os clientes que atendi, estive muito mais interessado em manter amizade com os bons vizinhos do que necessariamente expulsá-los ou qualquer coisa do tipo. E isso é o que posso escrever, respeitando o mistério.
No mais, algumas coisas úteis.
- Ofereça sempre fumo para entrar nas matas, coloque fumo de corda com mel em cima;
- Se uma criança aparenta estar com quebrante frequentemente, cruze 3 pregos em formatos de cruz, amarrados com uma linha vermelha e pendure na cabeceira de sua cama;
- Para enviar recado aos mortos, sussurre seus pedidos próximos a uma trombeta de anjo, evitando inalar seu odor. Faça isso nos caules ou próximo da terra, deixando com que suas raízes levem seus recados ao submundo;
- Caminhe com respeito no mar, na terra e nas montanhas.
- Não ofereça alho aos espíritos do rio.
E se precisar, chame por uma bruxa doutora de fadas.

Naê Della’Parma é uma bruxa queer, não binárie, que vive nas terras colonizadas dos povos Tupis Guaranis, conhecida hoje como Campinas/São Paulo. É iniciada na Tradição Feri e fundador do Clã Serpente de Ossos, clã de cunho familiar de treinamento e práticas Feri. Também é cientista social, pesquisador da monstruosidade. Como oraculista, Naê é astrólogo tradicional, utilizando astrologia helenística em seus atendimentos. Também faz atendimentos com oráculo de ossos e cartas de tarot. Como doutor das fadas, Naê é um bardo que caminha entre mundos, trazendo histórias do povo pequeno e espíritos da terra para auxiliar na jornada de outras bruxas. É membro da Tradição Reclaiming de Bruxaria, entende que Feri é a origem da sua magia e Reclaiming é como sua magia se manifesta no mundo: profundamente enraízada no seu ativismo mágico político anarquista, entendendo magia como possibilidades para sonhar futuros ancestrais.