Nimue, Nimue O que você está fazendo? Usando as constelações para pular corda? As luas para brincar de amarelinha? E os anéis de Saturno como seus bambolês? Nimue Nimue A sua risada faz a Terra girar; Sua adoleta floresce a primavera; Seu esconde esconde faz até o Sol entrar na brincadeira; Deixando tudo escuro Nimue, tudo absolutamente escuro. Mas você vem de novo, não vem? E assim a gente te espera. Até lá, gargalharemos contigo em todas as nossas brincadeiras.
– Prece poesia para Nimue, por Naê.
Tenho certeza de que em toda a minha existência, nas anteriores, nessa e nas próximas, eu não conseguirei contemplar a magnitude das divindades Feri. Todos os dias descubro algo novo, todos os dias me apaixono por eles, todos os dias nos casamos. Me sinto honrado, de certa maneira, de abrir meus textos nesse site falando dela, a criança sem rosto, Nimue.
O universo infantil sempre me atraiu. Vejo na infância uma supernova de criação, de curiosidade, de cores, de possibilidades e isso tudo é maravilhoso. Meus caminhos me levaram a um ensino médio normal, com habilitação em magistério, coisa que com certeza só existe em cidades como a minha, pequena, pacata e de interior. No magistério descobri minha paixão por teatro e por contação de histórias e foi com muito puxão de orelha e apoio das minhas professoras que entrei para o mundo do teatro de vez. Entrei porque queria ser contador. E hoje sou os dois. Contar histórias é um dos ofícios mais antigos existentes, sendo inclusive um ofício sacerdotal. Os contadores são aqueles que mantém a sacralidade da história vibrando no peito de cada um. São os contadores que com uma simples história arrancam emoções presas de quem assiste, revivem a infância, liberam o medo, tornam tudo mais leve. Bom, juntando as duas coisas, acabei me tornando professor de teatro na minha cidade. Professor de teatro para crianças e adolescentes. E já adianto, não é fácil. As crianças possuem um sol de energia dentro de si. Para lidar com crianças, ou você entra nesse grande tornado criativo ou você fica pra trás e se torna o professor chato e desinteressante.
Ao mesmo tempo, elas me ensinam da mesma forma que ensino para elas. As crianças possuem uma sabedoria única, elas entendem o mundo de outra forma, elas enxergam as coisas de outro jeito. Já cansei de sair das minhas aulas com os olhos marejados por conta de alguma fala. A imaginação é a lente por onde as crianças enxergam a vida. A imaginação é um ato mágico.
E o brincar? Com certeza é o primeiro direito que a criança tem. É brincando que a criança vai descobrir o mundo e formar toda uma aparelhagem psíquica de entendimento da vida, da sociedade e dela mesma enquanto ser atuante. Brincando, a criança também da espaço para a manifestação de sua criatividade, buscando os elementos necessários para compor aquilo que estava em sua mente. Entendo a criatividade como a força primordial das coisas, que levam o impulso da vida. A fagulha.
Quando temos esse direito roubado ou censurado, muitos complexos surgem. As crianças ficam agitadas, não tendo onde depositar sua energia e exercer seu direito de brincar. Algumas ficam agressivas. O rendimento escolar cai, as noites mal dormidas chegam e isso vai gerando emaranhados de raízes profundas naquele ser que só precisava ser criança.
Um outro ponto importante de ressaltar é a falta de afeto, carinho, cuidado e atenção, vindo de qualquer figura adulta que deveria ter proporcionado esses cuidados, mas por algum motivo não proporcionou isso. A falta desses elementos tão básicos na infância geram adultos ansiosos, possessivos, compulsivos, que não sabem lidar muito bem com seus sentimentos, com maior facilidade para se vingar, mesmo que inconsciente, de alguém e enfim… a lista de problemas é infinita.
Tratar com cuidado essa criança é nosso dever e direito com nós mesmos! E é isso que me movimentou a escrever esse texto. Percebo que na bruxaria não temos um espaço, um rito, um festival para cultivarmos essa criança, para honrarmos quem ela foi e quem ela se tornou, para nutrirmos ela com amor e afeto. Na verdade, parece que na bruxaria não temos essa preocupação em avançar através do tempo para realizarmos os nossos feitos mágicos, podemos estabelecer muitas conexões partindo do aqui e agora e geralmente acabamos tratamos esses assuntos, os do passado e do futuro, como se não fossem passíveis de serem mudados, mas são!
Você pode me dizer sobre a criança da promessa de Yule e de como esse é um rito de celebração da criança, mas não, não estou retratando dessa. Estou falando da sua criança, a que habita seu íntimo, a que ainda gargalha quando vê algo, que se conecta com o mundo de forma subjetiva, que brinca, que experimenta, que sente, a que come frutas sujando as mãos e o rosto.
Olhando para algumas manifestações religiosas no nosso país podemos achar espiritualidades que abrem espaço para essa manifestação da criança interior. Temos por exemplo as religiões de matriz africanas, a umbanda e o candomblé, que possuem o trabalho com os erês, espíritos de crianças que já desencarnaram e que incorporam no médium para exercerem algum trabalho, comer bolo, bagunçar o terreiro e trazer alegria. O médium que está recebendo essa criança também está de certa forma nutrindo a sua criança interior, mesmo que aquele corpo esteja brincando porque um espírito o está tomando conta, ainda sim é uma brincadeira. O fetch responde. O fetch sente.
Essa com certeza é a maior manifestação religiosa do nosso país que envolve as crianças, principalmente quando chega o dia de Cosme e Damião, santos da igreja católica também cultuados em terreiros de umbanda. É uma verdadeira festa e acaba movimentando toda a comunidade. Quantas vezes ouvi de minha mãe, mesmo sendo evangélica, sobre as festas de Cosme e Damião do seu bairro quando era adolescente. Ela amava.
E na bruxaria?
Todas as vezes que vi trabalhos e rituais voltados a infância na bruxaria de duas uma: ou eram trabalhos para curar alguma ferida da infância ou era algum rito de passagem, principalmente nascimento de bebês. Nenhum sobre honrar, celebrar e brincar com seu pequeno interior.
E logo a bruxaria, que como as crianças, tem na imaginação muito da sua fonte de poder. Todo trabalho mágico e todo feitiço antes de ser lançado é imaginado. Ok, você pode me falar que é “visualização”, mas vamos falar a verdade, o processo de visualizar é basicamente imaginar . E não precisa se preocupar em corrigir essa nomenclatura, a imaginação é tão poderosa e válida quanto. Se a imaginação é a verdade do mundo para a criança, ela também é a veracidade da magia para as bruxas. E nisso não temos que duvidar.

Lembro que em um momento da minha jornada mágica, surgiu aquelas dúvidas que com certeza você já teve. Aquela lamentação de “minha magia não funciona, não acredito em mais nada, estou largado aos prantos ohhhh!!!!”. Normal, quem trabalha com os pés no Outro Mundo vai ter esse drama muitas vezes porque ele desafia a nossa racionalidade humana. Acontece que em uma dessas minhas crises, fui chorar no colo dos meus irmãos de juramento, meus irmãos Feri. E meu iniciador me deu uma dica valiosíssima.
“Quando eu estou assim, eu brinco de faz de conta. Com isso vou sentindo a magia novamente.”
E foi ali que muito fez sentido. Muito foi curado e muito foi purificado. Eu não precisava ficar racionalizando meus processos mágicos. Eu precisava brincar.
Dentro da Tradição Feri, nossa alma é tripartida. Somos feitos de três almas em um só corpo. A primeira alma, que já mencionei anteriormente, se chama Fetch. Fetch também é conhecido como self jovem, é uma alma selvagem, que não fala por palavras, mas experimenta o mundo. O mundo da criança é completamente ligado ao Fetch. É o fetch que faz a criança sentir vontade de comer terra por conta do cheiro que ela provoca. É o Fetch que se delicia depois de andar no sol e beber um copo de água bem gelado. É o Fetch que ama comer uma fruta e deixar o suco dela escorrer por suas mãos. O Fetch não pinta dentro das linhas, ele é o mundo das garatujas infantis, onde as letras pouco importam, as tintas é que são as protagonistas.
O Fetch se comunica através de símbolos, sensações e sentimentos, sem palavras ou letras. É por conta dessa alma que temos a necessidade de construir simbolismos dentro da prática mágica. De acender uma vela amarela para tal coisa, de usar um athame para cortar os mundos, de segurar uma varinha para invocar um elemento. Conversamos com o Fetch enquanto ritualizamos. É ele que pega todas as correlações do mundo aprendidas pelo seu Caminhante (segunda alma) e vê se aquilo é verdadeiro ou não para você. Todos sabemos que o amarelo é o Sol, mas é o seu Fetch que decide se isso fala contigo ou não, é ele que sente se vale mais a pena deixar o amarelo ou trocar para um laranja, um rosa, um vermelho, independente das correlações previamente aprendidas.
É o Fetch que brinca. É o Fetch que ritualiza. E nesse momento de quarentena, de profundo estresse e exaustão, é comum regredirmos a fases anteriores, seja infância ou adolescência. É comum ficarmos irritados, carentes, procurando afeto e se enchendo de comida pra tentar lidar com essa falta de carinho que estamos procurando. Eu me peguei nesse processo nos últimos dias e o que tem me ajudado foi justamente alimentar não o meu corpo, mas a minha criança interior.
Foi com isso que comecei a pensar em possibilidades de trazer essa prática ao meu dia a dia. Listei algumas coisas que você pode fazer para se nutrir e se maternar mais nessa quarentena. Um cuidado de qualidade consigo mesmo, você merece, é seu direito de nascença.
Construindo um altar da infância
Separe um local, esse altar pode ou não ser temporário Ele serve para podermos nutrir e cuidar mais de nós mesmos, entendendo que todo esse universo infantil faz parte de quem somos hoje. Ele existe e ainda mora em algum canto de nossa alma.

Deixe seu Fetch brincar com o altar, gosto de despertar e agitar o meu fetch fazendo respirações profundas e dando tapas leves por todo o meu corpo, uma outra opção é se alongar, se remexer, talvez até dançar se você sentir vontade. Coloque no altar aquilo que desperta o desejo genuíno do seu Fetch, seja uma foto sua de quando era pequeno, seja brinquedos ou enfeites que você ainda tem guardado, seja um desenho que você goste, uma folha de árvore, terra, lama, massinha, o que for!!! Deixe sua criatividade e sua criança brincar nessa hora, ela é a protagonista. Você pode diariamente acender a vela desse altar e honrar a sua criança, seja com uma prece, com uma música. O que eu amo fazer é abrir um livro e contar uma história olhando para as minhas fotos, gosto de contar histórias para mim mesmo. Você também pode ofertar água, doces, comidas. Oferte e coma em seguida. O momento da oferta é importante para o simbólico, mas coma essa comida trazendo toda essa sacralidade do momento para dentro de si.
revisite seus álbuns antigos
Uma forma gostosa de revisitar memórias e sentimentos é pegar aqueles álbuns antigos que fazem companhia para as traças dos guarda roupas e passar um tempo olhando as fotos, se comunicando com elas, se olhando e vendo sua jornada. Você é o resultado de infinitas brincadeiras da sua criança.
assista um desenho que você goste muito
Quem não tem aquele desenho de infância que assistiu tantas e tantas vezes que decorou até as falas? Que tal assistir alguns deles? Pegue sua cobertinha, faça uma pipoca, se aconchegue e procure aquele desenho ou filme que mais gosta. Aproveite esse momento longe da internet, ele é um momento seu.
passe um tempo na natureza, se possível, claro
Toda criança ama brincar no mato. Os quatro elementos são importantíssimos dentro das brincadeiras. Se você tem a possibilidade de passar um tempo ao lado de natureza, faça isso! Nem que seja na companhia das suas plantas no seu apartamento, sente-se, observe o céu, ouça os pássaros. Regue suas plantinhas, fale com elas. Tenha esse momento para você.
pinte, desenhe, rabisque, faça arte!
Faça arte. Mas faça arte como uma criança faria, sem se preocupar com essa bobagem perfeccionista dos adultos. Deixe sua criatividade e seu Fetch falar. Suje as mãos de tintas, recorte e cole, faça colagens, esculturas de argila, seja o que for!!
Auto benção
Eu gosto de fazer essa auto benção usando alguma água consagrada. Geralmente consagro as águas do meu altar com orações voltadas à Brigit, mas você pode fazer isso com óleos, ervas, apenas movimentando a energia do seu corpo, tomando um banho de sol, enfim, aquilo que te toca e te faz se sentir abençoado de alguma maneira.
Tome algumas respirações profundas, se preencha de energia vital que circula ao seu redor. Quando se sentir carregado, passe essa energia para as mãos e toque sua foto de criança dizendo:
Que você seja curado
Que você seja protegido
Que você seja abençoado
Que você seja nutrido
Repita o processo, dessa vez olhando para um espelho, você pode optar por tocar o seu corpo enquanto fala a benção ou pode apenas falar se olhando no espelho. Quando terminar, tenha um tempo com você. Talvez você sinta vontade de se abraçar, experimente. Fique assim por um tempo.
construa uma boneca que te represente
Isso é incrível. Já vi psicólogos tendo essa abordagem em sua psicoterapia e realmente é muito boa. Construa uma boneca que te represente, ela pode ser feita de pano, meia, crochê, palha de milho, do que a sua imaginação mandar. Construa os enfeites nessa boneca, coloque roupas, cabelo, tudo aquilo que fale contigo. É o momento de enfeitar! Se sua boneca vem de um reino feérico e mágico talvez você sinta vontade de pendurar coisas que remetem a isso. Se a sua boneca vem do fundo do mar talvez você sinta vontade de enfeita-la com conchas. Ouse, não se limite a nada.
Depois de pronta, todas as vezes que você sentir a necessidade desse afeto consigo mesmo, dê amor a essa boneca. Fale com ela, abrace ela, mime. Não tenha vergonha disso, não é “infantil demais” para você. É você representado, trate com amor e carinho.
e por fim, algumas deusas podem ajudar
A Feri me ensinou muito a andar com as próprias pernas sem clamar por qualquer divindade só pra achar por exemplo algum objeto perdido em casa, e isso se aplica diretamente na minha forma de relação com os deuses e espíritos. Minha relação com os deuses passou a ser muito mais de amizade e compromisso do que de devoção e enaltecimento.
Com isso, quero dizer que todo esse trabalho que mencionei anteriormente deve ser feito sobretudo de você para você mesmo. É um trabalho construído a partir de você e para você. Mas também não descarto a possibilidade de você querer chamar alguma deusa para acompanhar sua jornada, já que muitos sentem nas deusas uma maternidade. Se você acha que vai ser aconchegante para o seu trabalho ter a companhia dessa maternidade divinizada, faça isso. Mas lembre-se de não depositar todas as expectativas desse carinho nas divindades, o carinho e afeto devem antes de qualquer outra coisa ou deusa, partir de você mesmo.
A bruxa e a criança compartilham o mesmo mundo. Essas ferramentas podem te ajudar a construir um caminho de cura e cuidado com a sua criança interior e isso se desdobrará em muitas coisas, as pessoas em sua volta com certeza serão afetadas. Isso te torna mais presente no aqui e agora, isso te torna mais empático com as pessoas. Isso te torna principalmente um adulto que pode dar afeto e cuidado aos que precisam. E no nosso momento atual, nesse mundo tão envenenado de ódio e preconceito, afeto é tudo o que precisamos.
Que Nimue te cubra com risadas e cócegas e que a sua criança interior brinque de esconde esconde nas milhares de estrelas que habitam dentro de ti. Sua infância, da maneira que foi, é válida e sagrada. Ainda há tempo de cura-la se for preciso, ainda há tempo de brincar se for preciso, ainda há tempo…
E que os braços da grande Deusa Estrela te afaguem e te confortem.
Com amor e carinho
Naê.

Naê é bruxa, contador de histórias, anarquista e ativista. É iniciado na tradição Feri pela linhagem DustBunnies de Valerie Walker. Também é membro da tradição reclaiming de bruxaria e da irmandade de Ísis, onde atua como sacerdote de Áine. Pesquisador de folclore e cultura popular brasileira, Naê faz do seu sacerdócio o ensino, divulgação e proteção do folclore e das artes, sobretudo do teatro, sua paixão.