“Aprendam a amar a arte em si mesmos e não vocês mesmos na arte.”
– Stanislavski

O pentáculo de barro é uma ferramenta que desenvolvi no meu treinamento na tradição feri que começou em 2018. Como todos os outros pentáculos, ele é uma ferramenta mágica que está presente no meu dia a dia e que tem como objetivo reclamar de volta para o seu corpo coisas que foram roubadas de ti durante seu crescimento. 

Os pentáculos, em geral, são ferramentas essenciais para qualquer praticante feri, junto com kala e alinhamento das três almas. São práticas núcleo. Os pentáculos, de um ponto de vista mais poético, é a forja da bruxa. É onde ela chama de volta todas as coisas que foram tomadas politicamente, socialmente e moralmente. É um processo de integração. No pentáculo de ferro chamamos de volta nosso sexo, nosso orgulho, nosso self, nosso poder e a nossa paixão. No pentáculo de pérola visamos o amor, a lei, o conhecimento, a liberdade e a sabedoria. 

Quando me deparei com essas ferramentas e fui instigado por meus professores a criar o meu próprio pentáculo veio o primeiro desafio: O que preciso reclamar de volta para o meu corpo? Qual ferramenta quero criar? Para quem ela se destinará? Qual a finalidade dela? Foram meses de mergulho em mim mesmo, mudei várias e várias vezes as pontas do pentáculo de barro, assim como mudei várias vezes seu nome, sendo chamado de pentáculo da artista e até mesmo de pentáculo dos bardos.

Acontece que a resposta que eu precisava e as pontas que compõem o pentáculo de barro estavam na ponta da minha língua, ou melhor, no limiar brilhante da minha pele. Quando eu estava procurando as pontas fui tomado por uma consciência súbita de que eu queria criar uma ferramenta para artistas. Mais do que isso, eu queria criar uma ferramenta para o corpo. 

O corpo, esse mundo à parte, solitário mas que ama uma companhia, esse corpo que nos acolhe, ora nos protege, ora nos esconde, ora mostra suas penugens lindas e coloridas. O corpo, o roubado, o pecaminoso, o livre.

Quando penso em corpo, penso automaticamente em política. Corpos são políticos. Em volta deles existem uma riqueza de diversidade, sexualidade, cores, tamanhos e formas e toda essa pluralidade impacta diretamente a sociedade em que vivemos. Sabemos o poder devastador da desigualdade social que nos assola, assim como também sabemos que alguns corpos bem específicos ocupam espaços que são, ou deveriam ser, direito de todos.

Quando penso em corpo, também penso o quanto ele foi preso, massacrado e torturado durante o nosso processo de criação e desenvolvimento. Quando nascemos e quando estamos nos primeiros anos da infância experimentamos uma liberdade que aos poucos vai sendo tomada de nossas mãos e não sabemos o porquê. Aos poucos, um tapa impede que nossa mão leve a terra até a boca, os movimentos livres que você chamava de dança se tornam motivos de vergonha, aquele canto que você amava soltar aos gritos é silenciado porque é incômodo, a sua roupa ou acessório é motivo de risada na escola e as brincadeiras nas ruas são tomadas por medos e confinamento. 

Na adolescência o beijo é pecado, o sexo mais ainda. A masturbação te leva a pedir perdão pra Deus, como se Deus também não gozasse. Para as pessoas queer, isso tudo é triplicado, com acréscimos de culpa, rejeição e violência. 

Nosso corpo, que nasceu com o propósito de ser curioso e de experimentar o mundo e seus sabores acaba se tornando uma máquina ligada no automático que caminha para uma morte rápida, que produz, que pensa mas nem tanto, que fala mas não compreende, que ouve mas não escuta, que enxerga mas não vê. 

E se a bruxaria não for uma ferramenta para acabar de vez com esse ciclo fúnebre, eu não sei para que ela serve.

A bruxaria é exatamente a ferramenta que proporciona chamar de volta todos os pontos que te foram roubados e que continuam sendo! Um grande erro é achar que, por começar a praticar bruxaria, estamos livres de todo esse processo e nada disso nos afetará novamente. Isso é uma completa distorção da realidade, visto que o impacto sobre nossos corpos é algo estrutural, sistemático e com uma cor bem específica. 

A bruxaria oferece as ferramentas, mas o trabalho é árduo. É diário. É um trabalho para a vida toda. Victor Anderson dizia que o pentáculo de ferro é trabalho para uma vida enquanto o de pérola, de muitas vidas. Eu assino embaixo. 

Criei o pentáculo de barro com base nesse olhar sensível sobre corpos e suas atuações na sociedade. O teatro, também meu ofício, me influenciou completamente e sem ele eu não teria essa consciência corporal pela qual me baseio para criar essa ferramenta e para escrever esse texto. Se tem algo que sou extremamente devoto e ainda me ajoelho perante a sua força, é o teatro. Sem ele não existiriam essas pontes de conexão que fiz durante esses anos entre bruxaria, corpo e expressão teatral. 

O pentáculo de barro é então uma ferramenta dedicada especialmente para as pessoas que querem reclamar para si pontos que se referem ao corpo e sua expressão atuante e que foram tiradas, massacradas e roubadas de ti. 

O nome, pentáculo de barro, é uma alusão direta ao processo de criação do homem, assim como a subversão da mesma ideia. O primeiro corpo que surgiu do barro moldado pelas mãos de Deus. É também pensado no processo artístico de molde do barro para que esse vire um recipiente poderoso que guarda dentro de si algo. Esse algo é o que a bruxa irá preencher com sua prática, com sua energia e com seu fogo, mas o vaso (corpo) estará pronto. 

Nude Woman Carrying Vase on Head (1909) de Auguste Rodin. Original de The National Gallery of Art. Domínio Público.

Ele é pensado e estruturado com base no processo de criação dos artistas que é  também o processo que a própria Deusa Estrela levou para criar o universo e os espíritos existentes. 

Suas pontas são: criatividade, inspiração, verdade, expressão e êxtase, voltando para a criatividade. 

Tudo começa na criatividade, a fagulha divina, o impulso, a chama da bruxa que se acende, o chamado escutado, a vontade e o desejo, a necessidade de fazer algo. A curiosidade pelo desconhecido. Tudo começa na criatividade, assim como os olhos da Deusa Estrela que se abriram e se encantaram com a escuridão do universo.  

Caminhamos para a inspiração, quando algo nos toca e não sabemos o que, a inspiração que era inclusive parte de um processo espiritual para alguns povos antigos. A inspiração toma conta do corpo da bruxa como um transe possessório e usa suas mãos para criar, sua voz para falar, seus olhos para ver, seus ouvidos para escutar. A inspiração que abre a bruxa para receber qualquer informação possível. 

Mas isso tem um filtro e assim chegamos na verdade. A verdade de ser quem se é e de acreditar naquilo que faz. Tudo que é feito sem verdade, é percebido, não toca o outro, não chega em seu íntimo. Tudo que é feito com verdade, assim como foi para a Deusa Estrela quando se olhou no espelho curvo do espaço e contemplou toda a veracidade do seu self, é poderoso. É criador. 

E nessa mistura, nos expressamos. Colocamos no mundo o que temos de mais íntimo. Expressamos da maneira que for aquilo que antes era um sussurro da alma. Expressamos aquilo que estava lá dentro, pequeno, mas poderoso e inquebrável. A expressão é o amor que a Deusa Estrela fez consigo mesma. 

E o resultado disso é o êxtase. Uma bruxa que tem seu fogo queimando sobre sua cabeça e sendo verdadeira com suas almas caminha em êxtase. Tudo faz sentido. Tudo se completa. Tudo se cria. Foi no êxtase que o orgasmo da Deusa Estrela criou todos os seres. E com isso, voltamos à criatividade, a primeira fagulha de criação. A curiosidade antes da curiosidade.

O pentáculo de barro é uma ferramenta criada por um artista, pensada para artistas, mas que não se limitam a esses somente. Hoje entendo o pentáculo de barro como uma ferramenta aos que desejam reacender a fagulha do próprio corpo, resgatar a curiosidade da criança e a indecência do adolescente e tornar tudo isso sagrado. O pentáculo de barro é a sacralização dos pecados e o culto ao corpo e toda forma de expressão do mesmo. É uma ferramenta essencialmente queer, pensada para aqueles que tiveram que silenciar sua própria expressão para se proteger de alguma violência. Estamos juntos. 

E por fim, é perceber o corpo como ofício. Como um ser atuante, vivo, que interpreta papéis, ora protagonista, ora coadjuvante, mas ainda assim papéis. Como um potencial expressivo, verdadeiro, alinhado com suas próprias almas e que deseja lá no fundo se banhar novamente no suco de fruta que escorre pela pele enquanto você a come. O corpo é a primeira e última ferramenta da bruxa. 

E o propósito da bruxaria não é garantir a sua evolução espiritual, mas tornar você cada vez mais humano. 

Criatividade. 
Inspiração. 
Verdade. 
Expressão.
Êxtase. 

Com amor e carinho
Naê.

Naê é bruxa, ator e contador de histórias, anarquista e ativista. É iniciado na tradição Feri pela linhagem DustBunnies de Valerie Walker. Também é membro da tradição reclaiming de bruxaria e da irmandade de Ísis, onde atua como sacerdote de Áine. Pesquisador de folclore e cultura popular brasileira focando principalmente em estudos de feitiçaria popular. Naê é também conjure, praticante de Southern Hoodoo.

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