
“O processo mais difícil para mim é sentir o ar se eletrizando. Fiz essa meditação por cerca de sete minutos e me senti completamente relaxado e inspirado quando acabei.”
- primeira meditação com o fogo azul, 23/03/2018
trecho retirado do meu diário de práticas feri.
Em 2017, quando eu me aventurava pelo site da feri, me encantando a cada página aberta e me deliciando com as poucas (porém muitas) informações colocadas em uma língua que eu nem dominava, algo me chamou atenção. Na aba de práticas, o termo fogo azul despertou em meu corpo uma curiosidade gostosa, tal como criança que descobre algo totalmente novo. Me lembro do arrepio que senti quando olhei para o desenho feito por Diana Walker: uma mão com uma cobra tatuada, uma escrita estranha e símbolos no seu pulso, os dedos escuros e… raios. Eletricidade em volta dos dedos, eletricidade azul. Aquilo foi literalmente um choque no meu fetch, me arrepiei, algo gritou dentro de mim com aquela prática e a partir dali, foi só o começo.
O fogo azul na feri é a prática mais básica que temos e quando falo básica, não me refiro aqui a uma tentativa de diminuição da mesma, mas falo básica no sentido de estrutura, de base, daquilo que firma nossos pés no caminho. Todas as outras ferramentas, práticas e rituais que um praticante feri encontra na sua frente partem dessa base bem construída, de uma prática constante com o fogo azul, para que a bruxa sustente cada vez mais, níveis maiores de mana em seu corpo. Mas o que é fogo azul? O que é mana?
Algumas pessoas gostam de usar muito o termo energia, quando se referem a uma forma de eletricidade, de pulsão, de manifestação que pode ser usada em rituais, direcionadas, colocadas dentro de seu corpo, sentidas em um ambiente, captadas pelos cinco sentidos. Mana e fogo azul são um tipo de energia, mas vale ressaltar que evitarei esse termo por conta do jeito que vem sendo usado, extremamente associado ao famoso “jovem místico” e a desvalorização constante de saberes e práticas ancestrais.
Mana é uma palavra presente na mitologia Melanésia, na Polinésia, é vista no folclore e na mitologia dos Maoris e em algumas práticas havaianas. É uma palavra proto oceânica reconstruída, se referia a “poderosas forças da natureza, como trovões e ventos de tempestades”. Com os povos oceânicos se movendo para o leste, a palavra começou a se desvincular do sentido mais original e passou a significar “poderes sobrenaturais, forças invisíveis”[1].
A tradição feri, inspirada por algumas práticas Huna, adotou o termo mana para se referirem a energia vital. Essa é a energia mais densa que podemos lidar e estamos constantemente produzindo mana, visto que ela nos mantém vivos. Produzimos mana naturalmente enquanto respiramos lendo esse texto. Produzimos energia vital quando nos alimentamos bem, quando praticamos atividades físicas, sexo saudável, alguma atividade que gostamos muito, quando dançamos ao som de alguma música e etc. Em rituais, as bruxas são acostumadas a movimentarem uma quantidade imensa de mana, que podem ser geradas por cantos, danças ou por outras técnicas para elevação de um cone de poder.
Mana é então, a energia que sustenta a vida. Na tradição feri, está intrinsecamente ligada à nossa primeira alma, fetch. Armazenamos mana nessa alma, à medida que cuidamos de forma saudável do nosso corpo. Mana se move através do nosso corpo por fios de fetch, também chamados em algumas linhas da feri de linhas de aka. Essas linhas tem como objetivo direcionarem e permitirem o fluxo de mana no nosso corpo. Quando temos mana em excesso, essas linhas entopem, não conseguem deixar fluir com naturalidade a energia vital e criam pontos no nosso corpo etérico, verdadeiros “coágulos” de mana. Ansiedade, irritabilidade, nervosismo são sintomas clássicos de uma mana mal direcionada e nutrida. Essa barragem de energia vital pode levar a complexos maiores, que na tradição feri, especialmente na minha prática, é o que chamamos de demônios.
Nossos demônios se alimentam desses pontos de mana mal direcionadas, podem surgir por alguma situação onde essa energia vital levou um choque, um trauma. Quando temos nosso sexo, nosso orgulho, nosso self, nosso poder e nossa paixão roubados, quando nos colocam pra baixo, quando brigamos com alguém, quando somos abusados, quando não nos respeitam por sermos quem somos, quando nos obrigam a algo. Uma infinidade de malefícios que a convivência com outros humanos nos geram. Os demônios surgem desses impactos, se alimentam da nossa energia vital, se enraízam na nossa desconexão com as três almas e adoram quando não estamos purificados e alinhados. O trabalho da bruxa feri, acima de tudo, é buscar a integridade de suas três almas, a autopossessão, a fim de que esses demônios não tomem controle da nossa mana e da nossa energia vital e enfim, do nosso corpo.
Fogo azul, atualmente, é um sinônimo de mana para praticantes feri. Essa associação passou a ser feita, até onde eu sei, através da linhagem BloodRose de Gabriel Carrilo. Práticas em sua linhagem começaram a trabalhar mana através do prana yoga, e posteriormente passaram a chamar energia vital de fogo azul. Hoje, na feri, é comum você encontrar praticantes que denominam energia vital de fogo azul, especialmente se essa bruxa faz parte de alguma linhagem que deriva da BloodRose de Gabriel. O termo fogo azul é frequentemente usado por alguns praticantes na tradição Reclaiming de bruxaria. Essas mudanças na tradição são comuns, como a própria Cora Anderson gostava de reafirmar “Esta religião não é um fóssil morto, mas uma experiência humana crescente e viva.”
Praticar a movimentação do fogo azul dentro da feri é a primeira coisa que uma bruxa vai encontrar, se essa começar um treinamento formal com algum iniciado. É necessário que ela reconheça os próprios fluxos de mana do seu corpo, encontrar pontos estagnados, buscar uma forma de equilibrar, de temperar esse fogo, para que assim prossiga no treinamento que vai coloca-la de encontro com energias mais, digamos, “difíceis” de lidar. Uma boa prática com o fogo azul garante que a bruxa não sofra um “curto circuito” mágico em seu corpo. Quando uma bruxa acessa energia mais do que seu corpo consegue sustentar, isso pode prejudicar sua saúde e sua integridade, seja em rituais ou não, e por esse motivo, é recomendado em todo ritual Reclaiming o exercício de centramento chamado árvore da vida, que nos mantém centrados, enviando excessos de energia do nosso corpo para o fundo da terra ou para os céus. Todas as práticas feri, desde o fogo azul até os pentáculos de ferro e o de pérola preparam o corpo da bruxa para a iniciação. O treino é exaustivo, encorajado por muitos professores a ser feito junto com acompanhamento psicológico, com um terapeuta qualificado.
Sou exemplo vivo disso. Treinei feri por quase três anos antes da minha iniciação. Treinei diariamente, construí uma base sólida de práticas e ingressei numa terapia junguiana, na qual faço até os dias atuais. Mesmo com todo esse suporte energético, com uma prática bem embasada e com orientação do meu grupo e do meu professor, eu passei por uma experiência bastante marcante pós iniciação, digamos que uma das crises de ansiedade mais fortes que já tive até hoje.
“É nosso direito de nascença ter a nossa energia vital correndo livremente por nosso corpo.”
– Um ditado Feri e Reclaiming
O trabalho com a mana do nosso corpo é constante. Não adianta termos boas práticas corporais durante um tempo e depois voltarmos ao confortável. Em todos esses anos praticando feri, é notável a diferença para mim quando pratico um alinhamento das três almas após uma prática física ou energética como Qigong/Tai Chi, de quando eu pratico um alinhamento das três almas com o corpo sedentário. Trabalhar com fogo azul é essencialmente, cuidar do nosso corpo da melhor forma que conseguimos.
Algumas vezes em rituais ou em feitiços, precisamos gerar uma grande quantidade de mana para o nosso trabalho mágico. Essa mana será direcionada ao nosso rito como uma forma de impulso daquela intenção aos mistérios da arte. Podemos gerar mana através de um simples processo de respiração consciente, trazendo o fogo azul para o nosso corpo, de modo que podemos lança-lo através de um sopro, de uma dança, de gritos e rezas, de um orgasmo. Nossos fluídos corporais são grandes condutores de mana.
Nosso fetch, a primeira alma, funciona como uma grande bateria dessa energia. Podemos perceber nosso nível de energia vital em nosso corpo prestando atenção nele, se estamos ansiosos, irritados, nervosos provavelmente temos energia em excesso. A falta de energia vital nos deixa… sem energia, literalmente, somos acometidos por uma preguiça, uma má disposição, uma procrastinação. Em ambos os casos, um exercício de centramento pode ser uma boa forma de temperar essas energias, enviando o excesso para a terra ou buscando na própria terra energia para equilibrar seu corpo.
Mana não costuma permanecer no nosso corpo por muito tempo. Por ser a nossa energia vital, é consumida muito rapidamente, mantendo os processos do nosso organismo funcionando de forma saudável. As vezes podemos ter uma prática de mana concisa e ainda sim nos sentimos indispostos, muito provavelmente essa energia está sendo direcionada para o funcionamento do seu corpo, não sobrando quase nada para você gasta-la em outras atividades, o trabalho, os estudos e suas outras atividades podem sofrer uma “preguicite”. Alimentação equilibrada, sexo saudável e prática física tornam esse processo mais equilibrado, fazendo com que nosso fetch consiga suportar mais e mais mana, não gastando tudo para nos manter vivos, deixando que essa energia esteja a disposição para ser aplicada nos nossos afazeres cotidianos.
É necessário que mana entre e saia do nosso corpo de forma cíclica, assim como o ar entra e sai de nossos pulmões. Querer prender mana no corpo para garantir mais energia é perigoso, pode danificar linhas de aka e garantir o mal funcionamento do organismo. Algumas doenças podem surgir por conta do excesso de mana no corpo e obviamente, da falta das práticas saudáveis. Cuidar da mana do seu corpo obviamente não supre os cuidados médicos necessários, mas é um primeiro passo.
Na minha prática feri, o fogo azul também usado em processos de consagração, purificação de ambientes, cura, conjuração de ervas e objetos mágicos, oferenda para espíritos e divindades. Por ser algo puro, uma energia pura que habita nosso entorno e nosso corpo, sopros de mana são frequentemente usados para dar de oferendas aos espíritos.
O fogo azul me chama muito atenção, em seu aspecto mitológico e folclórico. Na cultura japonesa, quando uma alma desencarna, assume uma forma esférica geralmente queimando um certo tipo de fogo azul ou verde, eles chamam isso de hitodama (人魂, ひとだま “alma humana” ou “bola humana”, é a junção das palavras hito (humano) tama (alma)), esse processo folclórico provém dos gases que entram em combustão em locais com grande atividade de decomposição, como cemitérios, produzindo um fogo bruxuleante que no conhecimento popular, foi entendido como a alma dos que descansam no local. No Brasil, o fogo fátuo é um fogo que brota nos corredores dos cemitérios e que persegue aqueles que andam por ali de noite, é tido como “alma penada” e também deriva do mesmo processo químico da queima desses gases.
Em muitas mitologias, sejam asiáticas, europeias ou brasileiras, o fogo azul é intimamente ligado as almas do outro mundo, ao submundo, ao inferno e a fantasmas. Na tradição feri, o folclore europeu que conecta o fogo azul as fadas prevaleceu. Algumas bruxas feri dizem que o fogo azul vem diretamente do mundo das fadas, é conectado aos espíritos do submundo e super necessário para a magia acontecer. Quem se lembra, por exemplo, da iniciação de Sabrina Spellman em sua série, onde a bruxa adolescente atravessava um arco de galhos que queimavam em fogo azul, entrando no espaço sagrado onde aconteceria seu rito iniciático? Em algumas tradições de bruxaria, o raio lançado para fazer o traçado de um círculo é estimulado para ter a cor azulada… coincidência?
No folclore europeu, o fogo azul tem diversos nomes: Will O’ the wisp, dead candle, Hobbledy’s lantern, Hampshire, Joan in the wad, Hinky Punk e muitos outros. Todos eles estão relacionados de certa forma com um fogo fantasma bruxuleante que indica a alma de alguém, a presença de algo sobrenatural.
No conto de fadas europeu “Smith e o diabo”, retrata a vida de um ferreiro que faz um pacto com um ser maléfico, sendo mencionado ora como a morte, ora como um gênio e posteriormente como o diabo. Em troca da alma, o ferreiro ganha a habilidade de trabalhar, soldar e criar com qualquer material. Com suas habilidades, ele cria um instrumento capaz de aprisionar o próprio diabo, com o intuito de não precisar pagar com o trato. Katharine Mary Briggs em seu livro “A Dictionary of Fairies: Hobgoblins, Brownies, Bogies, and Other Supernatural Creatures” comenta uma versão desse conto em que Smith, após perder tudo por conta do pacto e renegado tanto no céu como no inferno, ganha uma segunda vida dada por São Pedro. O diabo então lhe garante apenas um pedaço de brasa para que o mesmo se aqueça e o ferreiro passa então a assombrar campos e fazendas de seus conhecidos em forma de um fogo azul brilhante.
No folclore Escocês, esse fogo fantasmagórico poderia ser levado e carregado por fadas, trolls e outros seres sobrenaturais. Em alguns lugares da Escócia, Will o’ Wisp ganha o nome de Spunkie.
Interessante vermos a conexão do fogo azul com as fadas e com a morte. Traduzido como um sinônimo de energia vital nos dias atuais para a tradição feri, criando mais um paradoxo para seus praticantes. O fogo azul que assustavam viajantes que andavam nas florestas e pântanos escuros, acreditando ser um fogo amaldiçoado pelas fadas é o mesmo fogo treinado, praticado e sustentado pelas bruxas feri.
De um ponto de vista de alguns praticantes feri, quando morremos nosso fetch volta ao rio de sangue do submundo e nosso corpo físico, cheio de mana e fogo azul, é consumido por outros animais, pela terra, gerando mana e energia vital para a vida além da nossa vida. Seria pertinente ao meu ver, perceber que o fogo azul avistado no cemitério é facilmente associado a esse excesso de mana produzido pelo nosso corpo em decomposição. Claro, não ignorando o fator científico da queima desses gases, faço aqui uma comparação poética e folclórica de entender o fogo azul.
Até porque, o quanto de vida e energia vital existe na morte, não é mesmo?
Vitalidade para o nosso corpo. Manifestação da alma pós morte. Fogo amaldiçoado pelas fadas. Almas amaldiçoadas pelo diabo. O fogo azul é, em essência, a vida e a morte, ora nos dando sustento para continuar, ora nos adoecendo. O trabalho de uma bruxa feri é, para a vida toda, controlar as brasas desse fogo que queima incansavelmente dentro de cada uma delas.

Naê é bruxa, contador de histórias, ator e folclorista. Uma bruxa queer, anarquista, que vive nas terras colonizadas do povo guarani, conhecida como Campinas/SP. É iniciado na tradição feri pela linhagem Dustbunnies de Valerie Walker. Também é membro da tradição Reclaiming de bruxaria desde 2017. Pesquisador de folclore e cultura popular brasileira, Naê desenvolve seu trabalho pesquisando causos da oralidade no Brasil, sua pesquisa pode ser acompanhada no podcast “Naê, o Bardo” ou no instagram @naedellaparma.
Referências:
– Tradição oral da tradição feri de bruxaria
– A Dictionary of Fairies: Hobgoblins, Brownies, Bogies, and Other Supernatural Creatures – Katharine May Briggs, 1976
– Podcast Stories of Scotland: https://www.storiesofscotland.com/podcast/willothewisp
– Arquivos pessoais da tradição feri de bruxaria
– Evolutionary Witchcraft – T. Thorn Coyle, 2005
[1] Blust, Robert (2007). “Proto-Oceanic Mana Revisited”