“Quão bela é a pureza lasciva e negra no coração das crianças e dos animais selvagens.”[1]

O Coração Negro ou a Rosa Negra da Inocência é um dos principais e mais preciosos conceitos que residem no coração da Tradição Feri de Bruxaria. Victor Anderson diz que o Coração Negro é “esta pureza sexual que existe na criança antes dela ter sido agredida em submissão por adultos corrompidos.”[2] Refletindo a natureza inteiramente sexual e extática de nossa tradição, este conceito entrega de forma concreta o que direciona nossa prática e nossa bruxaria: a inocência curiosa e sexual que reside, ainda que perdida e passível de ser recuperada, dentro de nossos corações.

O Despertar de um Coração Negro como a Noite, por Yuki Fae (2022).

Nossa tradição é uma tradição completamente sexual, e isso se desdobra das mais diversas formas. Sexual porque o Sexo é o início e o fim de tudo – a Deusa Estrela dança eternamente sua Dança de Sexo e Amor e, com isso, cria, destrói e recria tudo que há a todo momento. É seu êxtase sexual que permeia todas as coisas, que compõe a tessitura da realidade, que conecta tudo e todos. As linhas dos Destinos são Sexo, Amor, Êxtase. Elas brilham negras e inocentes, assim como o Coração Negro.

Sexual porque o êxtase vem do prazer e da entrega, do terrível e do mistério, e os orgasmos que vivemos em nossas vidas, através de nosso corpo e nossas três almas, compõem e refletem a primeira experiência extática que já existiu. Estamos, a todo momento, guardiões do Coração Negro e Inocente, inspirando e expirando com a Deusa Estrela. Nosso corpo, união do que as pessoas comuns chamam de limite entre o sagrado e o profano, pouco se importa com essas divisões: gozamos, gritamos, gememos em honra à Ela, cuja existência é adorada e apreciada por seus Gêmeos Divinos e nossa Corte de Espíritos.

Encontro com a Deusa Estrela, por Yuki Fae (2022)

Sendo assim o Coração Negro é este estado natural da alma, não condicionado pela sociedade, “estado de encantamento selvagem pelo qual podemos tocar os Antigos Poderes da Arte, que são em sua essência extáticos e sensuais”[3]. É através do Coração Negro que nos (re)conectamos com a força vital que tudo sustenta, tudo forma, tudo compõe. É porque nos lembramos de nossos Corações Negros da Inocência que nos deitamos na Teia da Vida e relembramos nosso caminho de volta para a Fonte de Tudo, a Rainha dos Espelhos, e nos regozijamos na companhia da Virgem Negra dos Espaços Exteriores.

O Coração é Negro porque esta é a cor do Vazio, do Escuro do universo que dá lugar para as estrelas brilhantes, do Espelho Curvo e Negro da Existência. Negro porque brilha em tons de azul sob a luz da Lua. Negro porque revela o mistério, nos direciona ao desconhecido, abre caminho para o Primordial. “Negra é a noite, e a noite é bela e pura. Ter a pureza da noite negra no coração é aceitar-se como um ser sexual – na verdade, regozijar-se com isso.”[4]

Nimue, por Yuki Fae (2022).

Ele é Inocente porque é pura curiosidade infantil, simples e concreta, aberta aos abismos da vida e aos amores da morte. Ele é Inocente porque brilha profusamente no olhar de cada criança, no som que deixa a boca de cada animal selvagem em sua busca por sobrevivência. Ele é Inocente porque é direto, concreto, verdadeiro, honesto, completamente interligado com a força vital, o Fogo Azul das Fadas. Ele é Inocente porque é um presente de Nimue, a Donzela Sem Rosto – eterna amada de Quakoralina – para cada ser humano.

Para Victor, “isto é algo que perdemos enquanto raça humana como um todo.”[5] Assim como a Feri é uma herança da humanidade, mas nem todo ser humano pertence a nossa família, o Coração Negro da Inocência é algo que todo ser humano possui, mas nem todo ser humano o percebe, experimenta, deseja retornar a ele, quer um relance de sua presença. Expulsos dos Jardins do Éden, fundamos a sociedade e suas regras, leis, ética e moral. Criamos cultura e distorcemos conceitos primordiais que vieram dos céus – Sexo, Orgulho, Self, Poder e Paixão. Expulsos dos Jardins do Éden, perdemos o contato com os nossos Corações Negros da Inocência, mas porque os perdemos, criamos e vivemos o que somos hoje.

No entanto, alguns de nós desejam retornar ao Éden, e desmentir a falácia de que a Serpente nos enganou, de que o Sexo é o pecado original, e que a maçã nos foi oferecida por mãos corruptas e não por mãos orgulhosas. Nossa Arte nos permite fazer esse caminho de volta através das nossas ferramentas, de nossos Espíritos, de nossa jornada. O trabalho diligente com os Pentáculos de Ferro e de Pérola revelam em seu centro nosso santo graal[6], o estado primal do ser humano em equilíbrio dinâmico com Sexo, Orgulho, Self, Poder, Paixão e com Amor, Lei, Sabedoria, Liberdade, Conhecimento. O Alinhamento das Três Almas, nossa oração mais respirável, abre caminho para o cultivo desta Rosa Negra. Kala-Kala, nosso rito que desfaz os nós, religa os fios negros e inocentes de nosso coração. E cada um de nossos mais amados aliados, nossa Corte de Espíritos, revela a cada encontro um pouco mais deste sagrado mistério que reside dentro de nós.

Vivemos a vida toda para cultivar, alcançar e viver este estado, pelo menos, algumas vezes em nossas vidas – o Coração Negro da Inocência é, assim como Pentáculo de Ferro, o trabalho de uma vida[7]. Ainda que um belo lugar para se viver, não vivemos eternamente em um estado de Coração Negro da Inocência – não retornamos a ele para permanecer nele para sempre, mas sim para relembrá-lo, assim como lembramos nosso caminho de volta pra casa.[8] Forjamos nossa própria ética, como uma tradição de guerreiros que somos, desta rememoração. Mesmo que nossa Arte seja a Arte das Fadas, nosso é o mundo humano e somos todes humanos. Nosso lugar em Elphame existe e é nosso de direito, mas não moramos lá. Somos Feri: profundamente fadas, completamente humanos. Victor uma vez disse que o desejo dos Fey para nós é que nos tornemos cada vez mais nós mesmos, cada vez mais humanos.[9]

É quando experimentamos este estado de Coração Negro da Inocência que podemos então vê-lo nos outros, no mundo ao nosso redor. Ele não pode ser observado diretamente, em seu modo cru de existência. Como nos diz Cora Anderson, “nós todos nascemos como seres sexuais e, ao menos que seu coração ainda seja negro e inocente, não olhe tão profundamente para o significado de nosso mais sagrado símbolo.”[10] Só podemos ter notícias de sua presença através de sua influência ao nosso redor – ele pesa como um buraco negro que distorce matéria, tempo, espaço. Sua presença muda os fios dos Destinos, uma aparição da própria Deusa Estrela em carne, osso, sangue e sopro. Ela muda tudo o que Ela toca, tudo o que Ela toca ela muda.[11]

Se estamos caminhando pelo mundo a partir deste estado primordial de existência, saberemos instantaneamente. Honestidade e Verdade nos guiarão pelo mundo como flechas indo em direção ao objeto final. Conectados com tudo que existe, e existindo porque a conexão com a Fonte de Toda Força Vital se fez, ouvimos, dizemos e agimos para mudar e (re)encantar todos os mundos. Nosso Santo Demônio, halo vivo e santo que nos guia como a mais bela das flores, fala a Língua das Línguas através de nossa boca. Coroadas soberanas de nós mesmas, podemos pedir o que quisermos ao universo que teremos o que desejamos[12] – nossa é a magia que vale a pena, pois é perigosa.[13]

Coração Negro da Inocência, por Naê

E quem guarda o Coração Negro da Inocência? O Guardião do Centro, Mantenedor da Rosa Negra da Inocência – e iniciade Feri que recebeu o beijo das estrelas, receptáculo vivo dos Mistérios vivos de nossa tradição, descendente do Orgulho e do Amor.


O Coração Negro da Inocência[14]

Quando a dança aconteceu,

E a partitura da vida prosseguiu

Sua melodia encontrava sequência

Na batida de um único coração

O Coração Negro da Inocência

O primeiro, um conceito

O segundo, um triunfo

O terceiro, um desejo

E lá estava ele, em frente ao espelho

Enquanto Ela se olhava e mudava

Se via, mas não mais se enxergava

E percebia sua força em outra forma

Com um centro escuro e brilhante

Filetes de dourado brilhando, chamando, cantando

Baixinho, sussurrando, um segredo:

“A única forma de criar

É alcançar este estado de ser

O coração primal,

O primeiro pulso,

Tão negro e tão inocente

Como o reflexo no espelho

Quando nós somos Deus, Ela Mesma

E também ela, a Virgem Negra.”

Criando, em um ato cósmico

Em um pensamento eterno

A vontade incessante

Do abraço, do beijo

Do amor que (ainda) não entendo

Mas que me guia em direção a mim mesmo.


[1] Cora Anderson, Fifty Years in the Feri Tradition, p. 30.

[2] Victor Anderson, The Heart of the Initiate, p. 27.

[3] Storm Faerywolf, Betwixt & Between: Exploring the Faery Tradition of Witchcraft, p. 297.

[4] Valerie Walker, The Dustbunnies/MarchHares Big Damn Handout Volume 1.

[5] Victor Anderson, The Heart of the Initiate, p. 27.

[6] Storm Faerywolf, Betwixt & Between: Exploring the Faery Tradition of the Craft, p. 298.

[7] Ensinamento transmitido por Pandora, Iniciada Reclaiming e Feri, no livro the T. Thorn Coyle, Evolutionary Witchcraft.

[8] Conhecimento oral transmitido por Bruno Pythio em conversas privadas.

[9] T. Thorn Coyle, Evolutionary Witchcraft, p.19.

[10] Cora Anderson, Fifty Years in the Feri Tradition, p. 30.

[11] Música tradicional da Tradição Reclaiming de Bruxaria.

[12] T. Thorn Coyle, Evolutionary Witchcraft.

[13] Uma alusão ao dizer de Victor Anderson: “Tudo que vale a pena é perigoso.”

[14] Poesia de minha autoria, um tributo ao Coração Negro.


Lilo Assenci (ele/elu) vive nas terras colonizadas do povo Jacutinga, também conhecidas como Nova Iguaçu – RJ. É uma Bruxa queer/não binárie, ume sacerdotize, um Coelho da Lua, tradutor e professor, praticando bruxaria há mais de 15 anos. É iniciado na Tradição Feri de Bruxaria, sendo co-fundador do Clã Coelhos da Lua, grupo de cunho familiar de práticas Feri. É uma Bruxa Reclaiming, sendo um dos membros fundadores e organizadores da comunidade Reclaiming Brasil. Co-ensina core classes presencialmente e online em Witchcamps e em comunidades diversas, e co-facilita rituais nacional e internacionalmente. Seu trabalho mágico é profundamente conectado com o anarquismo, imersão na magia e sabedoria da terra e do mundo dos espíritos, comunhão com os espíritos humanos e não humanos, inclusividade e justiça radicais, folclore e ativismo mágico-político. Tecendo magia, cura e ativismo em um trabalho de auto possessão e integração, este é o caminho que ele encontra para encantar os mundos.

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